Imagem colorida. Fotografia tirada de frente. Em plano único, um guarda-roupas em cerejeira, com detalhes decorativos no topo e pés esculpidos. O móvel sem portas, encontra-se em um espaço expositivo, iluminado. Na parte interior do objeto consta o seguinte texto: “Quem vem do centro chega aqui pela Ponte da João Pessoa, única com Palmeiras-da-Califórnia plantadas sobre o dorso. Seguindo uma quadra adiante, no sentido do rio, encontra-se a Ponte da Azenha. Suas tochas de pedra são uma cortesia dos antigos para iluminar o trajeto daqueles que saiam da cidade em direção ao camposanto. Meu pai trabalhava num prédio do qual eu me orgulhava. Possuía átrio, colunas e chamavam-no Palácio, distinções que as escolas públicas nas quais minha mãe trabalhou nunca alcançariam. Eu e minha mãe saímos de férias e não retornamos. Hoje me pergunto por que, na época, não estranhei. Voltamos uma única manhã quando a casa não funcionava mais. Abrimos a dispensa e cozinhamos macarrão para comer de café. Por aquela época, no interior, comecei a desenvolver medo patológico. No Palácio, quando anoitecia, os policiais fechavam a porta que dava acesso à fossa porque ainda escutavam gritos.”
Instalação "Esqueleto no guarda-roupa" de Manoela Cavalinho. Casa de Cultura Mário Quintana em 2021. Foto de Fábio Alt.
"Esqueletos no guarda-roupa". Expressão que vem da língua inglesa skeleton in the closet. Quais os segredos que as nossas famílias escondem nos "armários"? Quais histórias são escolhidas para serem contadas aos filhos? Quais são banidas? Quais são transmitidas?

Sabemos que o que se transmite não é somente o que é dito. Sabemos que às vezes os não ditos têm um poder de transmissão maior do que o que se pretende dizer. Sabemos que aquele que escuta pode escutar/captar as intenções, os desvios, os silêncios, as lacunas. Sabemos que o inconsciente escuta o que não queria ser dito.

Manoela escutou os esqueletos no guarda-roupa de sua família. Escutou e não silenciou. O que significa silenciar? Ser cúmplice através do silêncio? Manoela criou a partir do horror com seus epigramas.

São muitas as perguntas. Qual a participação de seu pai na ditadura? Ele torturou alguém? Ele matou alguém? Ele resistiu mesmo sendo policial?

Mais do que de fatos ou provas concretas, a obra de Manoela fala do medo. Medo de ver e de não ver. Medo dos segredos e dos fantasmas de sua família.

Mas as perguntas e os medos de Manoela não são somente dela. Como brasileiros, todos temos nossos esqueletos nos nossos guarda-roupas. Nossos antepassados escravizaram indígenas e negros? Nossos antepassados estupraram? Nossos antepassados torturaram?

O que nos é transmitido?

O que fazemos com o que nos é transmitido?

Como não sermos cúmplices dos crimes do passado?

Nós nos beneficiamos de crimes passados mesmo sem saber que fomos?

Somos privilegiados pelo sangue de outros, de outras épocas?

Qual o nosso lugar na História e como deixamos de transmitir o horror?

Manoela, corajosa como é, escolheu não colocar os segredos da família de volta no guarda-roupa. Escolheu abrir, escrever e inscrever com seus epigramas, saindo do particular da casa e indo para as ruas.
“Afinal, perguntei uma vez para o meu pai
se ele já tinha visto alguém morrer:
- Sim, uma pessoa.
- Que pessoa?
- Uma pessoa que estava no porão, no pau de arara.
- Foi tu?
- Não.
- Quem foi?
- Outra pessoa.
- Como?
- Com uma paulada nas costas.
- Como tu sabia que estava morto?
- Cuspiu sangue. Estourou o pulmão.
Suspirou”

(Manoela Cavalinho, 2021)
Fotografia colorida. Em primeiro plano uma pessoa carrega uma placa acrílica transparente com a seguinte mensagem: Tive a impressão de estar num matadouro de gente, assina Bona Garcia. Ao fundo retrata a fachada do Palácio da Polícia na cidade de Porto Alegre.
Fotografia colorida. Em plano único o totem do Palácio da Polícia Civil do RS. Sobreposto a ele uma placa carrega a seguinte mensagem: Entre 1966-1982 cerca de 1000 presos políticos foram torturados neste local.
Fotografia colorida. A imagem retrata parte de uma porta de metal de duas folhas, que é a porta do Palácio da Polícia de Porto Alegre. Em plano inferior, apoiado no piso, um pedaço de madeira foi adesivado com a seguinte frase: Então o sangue começou a jorrar e eles colocaram uma bacia embaixo para não sujar tanto a sala.
Manoela Cavalinho conversa com o Museu das Memórias (In)Possíveis