Entre as dobras
e os desdobres:
encontros
no infinitivo
Textos de Maíra Brum Rieck
O que são os objetos? A que(m) eles servem? O que eles revelam de cada um de nós? Qual relação que construímos com e através deles? É evidente que elegemos, ao longo de nossas vidas, objetos essenciais para nós, objetos que carregam memórias, que dizem quem somos. Objetos que são para além do que são, objetos que carregam uma narrativa tão forte que acabam tendo a força de nos situar no mundo. Mas o que são os objetos quando eles são em si mesmos? O que são eles quando não carregam uma história, uma metáfora? Poderia parecer que um objeto destituído de metáfora ou simbolização seria um objeto vazio, que não diz nada. Mas nem sempre é assim. Às vezes, a insistência da repetição nos mostra a sua importância, mostra que mesmo o objeto que não carrega uma história se torna ele próprio parte do corpo do sujeito, uma extensão que transmite algo, que gera algo em nós.
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Papéis coletados e empilhados na casa de Ademir. Material ainda não trabalhado por ele.
escolher
coletar
Essa galeria conta do trabalho de Ademir e de Márcia que se deu ao longo de anos em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Não se trata de um trabalho em conjunto, mas de dois trabalhos que se encontram. Ademir passou a vida dobrando papéis. Jornais velhos ou novos, folhas de caderno usados, folhas de revista. Não importava qual era o tipo do papel, desde que não fosse em branco, servia para seu propósito. Se estava furado, Ademir colava o papel, colava tão bem que parecia uma costura. “Cerze” seus rasgos até não ficar quase nenhum resquício de que um dia foi rasgado. Depois, desenhava na folha e a dobrava. As dobraduras pareciam que tinham saído de uma gráfica, como se as folhas tivessem vindo de uma loja, como se fossem novas. Ele então agrupava 10 dobraduras em uma sacola plástica.
Ademir é um artífice, um curador de papéis. Sua vida estava no tempo cíclico, em um looping infinito de infinitivos: coletar, cerzir, desenhar, colar, dobrar, endereçar. Para onde endereçar o seu trabalho? Por anos ninguém o recebera. Suas dobraduras/cartas ficaram sem destinatário.

Ademir nunca escolheu Márcia, foi Márcia quem escolheu/acolheu Ademir. Ademir não escolhia, não abria portas. Esperava que alguém abrisse as portas para ele entrar. Precisava ser convidado a entrar. Nunca entrava sem convite. Se ninguém abrisse, ele ia embora. Márcia abriu as portas para Ademir e colocou seu trabalho dentro de determinado lugar de valor, de diferença. “Ele dobra como ninguém”. Marcou sua diferença no mundo. Inscreveu Ademir na memória. Márcia se fez destinatária do trabalho de Ademir, se responsabilizou por ele. Por ele Ademir e pelo seu trabalho, que na verdade, sempre foram um só. A extensão que se funde no corpo. Ademir, como os papéis, também tinha o corpo dobrado de tanto dobrar.
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Papéis “curados” por Ademir. Ademir cola, desenha, escreve nos papéis antes de dobrá-los.
cerzir
curar
organizar
dobrar
Ademir trabalhando.
Márcia não só o recebeu, como começou a construir pastas e caixas feitas sob medida para caberem as dobraduras de Ademir. Márcia fez o que ninguém antes tinha feito: desdobrou as dobraduras. Resolveu ver o que tinha “lá dentro”. Revelou as inscrições guardadas em suas dobras. Por que dobrava? O que significavam seus desenhos e inscrições? O que queria dizer? Por que não parava de dobrar? Por que suas sacolinhas vinham sempre com 10 dobraduras? Por que os papéis não podiam ter nenhum rasguinho? Qual a sua história?

Márcia marcou uma diferença na vida de Ademir, ela o viu como alguém único, singular, que fazia algo como ninguém. Márcia entra em looping também: receber, agrupar, organizar, encaixotar.

É assim que se dá o encontro. Ademir dobra, Márcia coloca nas caixas ou pastas. Quando não tem mais onde guardar, Márcia fotografa tudo para poder descartar. Nunca descarta sem registrar. Nunca descarta sem preservar. Depois disso, tudo começa novamente. Ademir não se importa com o destino de seu trabalho, o importante é fazê-lo e entregá-lo à Márcia.
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As sacolas de Ademir e a contagem do tempo. Cada sacola é uma semana.
endereçar
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Márcia desdobra os papéis, seleciona, cria caixas e pastas no tamanho exato das dobraduras.
emoldurar
receber
Márcia se importa. Sente que esse trabalho precisa de um destinatário. O infinito do trabalho de Ademir começa a ficar insuportável para ela. Ela não queria que o infinito de Ademir fosse o seu infinito. Então ela põe um fim: vai seguir recebendo o trabalho de Ademir, mas ela própria pararia de fazer as caixas e as pastas. Ela precisa de mais verbos no infinitivo para marcar um finito no infinito de Ademir: fotografar para descartar. Ela então começa a fotografar o trabalho deles. Mas ainda não sabe para onde endereçar as fotografias.

A entrada do Museu nessa história é um acaso, um segundo encontro se dá. Agora o encontro é entre Márcia e o Museu das Memórias (In)Possíveis. No momento em que ela não sabe mais o que fazer com o material, um convite de exposição surge, e o destino das dobras de Ademir e dos desdobres de Márcia acontecem. Márcia pode endereçar o trabalho dos dois ao Museu. Ademir, que sempre considerou suas dobraduras como trabalho escolar, agora tem seu trabalho musealizado. Seu trabalho começa a abrir portas para nós, que o olhamos a partir do olhar de Márcia. E agora abre portas a quem aqui o vê, através do olhar do Museu. Agora é ele quem ensina, no sentido das perguntas que seu trabalho provoca em quem o vê.

Os infinitos de Ademir, os finitos de Marcia encontram as possibilidades no impossível do Museu.
Márcia contando o tempo. Cada sacola é uma semana.