Fala sempre repetida do então presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) exemplifica esse pensamento. Queriam transferir cidadãos nordestinos que sofriam com a seca e fome, vivendo em áreas com concentração de pessoas em estado de penúria, para terras no norte, onde a selva amazônica era virgem e, supostamente, desocupada. “Homens sem terra numa terra sem homens” era a máxima do general. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 167)

Além de objetivos militares a partir de 1964, essa vertente geopolítica sobre a região amazônica determinou que fosse implementada uma ação de ocupação de espaços vazios do território. À época, os militares acreditavam que a baixa ocupação demográfica na Amazônia fragilizava a segurança do território brasileiro. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 167)

Adotou-se estratégia para atrair o capital privado para a região. Foi desenvolvido um plano de incentivo para empresas, corporações e fazendeiros se estabelecerem em terras amazônicas. O planejamento previa, além da doação de extensas partes de terras, isenções fiscais, financiamentos e outras benesses. O resultado é que até mesmo instituições bancárias e montadoras de automóveis ganharam extensos quinhões de terra na Amazônia. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 167-168)

Os conflitos e a retirada de território
Isso gerou conflitos inimagináveis e sem fim. Tudo sob a desculpa de possibilitar o desenvolvimento econômico na região, que ficou caracterizada pela concentração de enormes extensões de terras. Esse processo culminou com a expulsão de milhares de trabalhadores e pequenos agricultores que anteriormente ocupavam parte desse território. Sem contar com pobres cidadãos que já́ habitavam esses locais e aldeias inteiras de povos indígenas. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 168)

É importante destacar que parte desses milhares de pequenos agricultores e trabalhadores haviam sido pouco antes incentivados por uma política pública agrária – do próprio governo federal – a se transferirem para a Amazônia. Migraram em troca de um pedaço de terra para produção própria. Eram posseiros e pequenos produtores rurais, que foram atraídos para a região nos primeiros anos após-1964. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 168)

Durante a operação de transporte de 286 integrantes da aldeia Suiá Missu para a Missão Salesiana São Marcos, na cidade de Barra do Garças, cerca de 400 quilômetros ao sul de onde estavam, quatro crianças foram levadas pelos militares, reclamam os indígenas. Depois, uma quinta foi levada de dentro da própria missão, revela o Padre Bartolomeo Giaccaria. Nenhum militar se opôs. Ninguém dos órgãos governamentais federais procurou ajudar os pais dessas crianças após o sequestro. Os casos ficaram escondidos, esquecidos. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 170)

A Ometto
Para adquirir e ocupar as terras no Mato Grosso, os Ometto ganharam vários benefícios do governo militar. Tomaram posse de área de aproximadamente 647 mil hectares. Uma imensidão de terras valiosas, equivalente a quatro vezes e meia o tamanho da cidade de São Paulo. O incentivo fiscal total foi de CR$7.878.000.000,0013. O projeto compreendia a implantação e desenvolvimento de cinco núcleos: o núcleo sede, que seria instalado em 1966 e onde estavam os indígenas Marawatsédé, e os núcleos Fontoura, União, Roncador e Xavante, que seriam instalados em 1969, 1972, 1973 e 1975 respectivamente. Para tanto, o empreendimento contava, conforme consta no processo nº 08749/66, com área de 646.824 hectares dos 800.000 hectares que a área da família Ometto possuía. Este chegou a ter o status de maior latifúndio do mundo. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 170-171)

Exploração e analogia a escravidão
A convivência dos funcionários dos Ometto junto com a exploração da mão de obra indígena não deu certo. Inicialmente os indígenas acreditaram nas promessas de ajuda feitas pelos homens brancos. Depois perceberam a exploração escravagista e começaram a se rebelar. Damião Paridzané, atual cacique da terra indígena (TI) Marãiwatsédé, declarou ao Ministério Público Federal que o povo, naquela época, “foi trabalhando como escravo (…), morreu muita gente. Trabalhando sem receber dinheiro, sem ganhar nada, sem assistência de saúde nenhuma”. Paridzané, filho e neto dos índios deportados, contou ainda que Ariosto da Riva só dava arroz quebrado para os índios se alimentarem. Não eram grãos inteiros. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 171-172)

Ocupação do território, destruição e proibição das ações de subsistência
Sobreviviam com uma dieta alimentar muito fraca. Estavam impedidos de caçar e pescar nas terras que agora eram do homem branco, os empresários paulistas. A presença dos indígenas dentro do território da Fazenda Suiá Missu era um incômodo para os novos proprietários. A sede da empresa foi construída sobre o local onde ficava uma das aldeias, a principal delas. O casarão ocupou o lugar da principal oca. […] (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 172)

Para desenvolver o agronegócio era necessário contratar mão de obra de fora para o trabalho na fazenda, que tinha como primeiro objetivo a limpeza do terreno para implementação de criação de gado. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 172)

Aquilo que chamaram transferência
Então, para fazer andar seus projetos, os empresários paulistas resolveram o impasse de forma drástica. Transferiram toda a aldeia de dentro da fazenda para outro lugar. Órgãos federais de proteção aos indígenas e as organizações militares deram anuência para a transferência. Indicaram a Missão Salesiana São Marcos em Barra do Garças para abrigar os quase 300 Marãiwatsédé. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 172)

A verdadeira face do processo
Os indígenas foram divididos em três grupos de quase uma centena de pessoas. Misturavam homens, mulheres, crianças, adolescentes e anciãos. Não respeitaram a composição das famílias, que foram, muitas vezes, separadas. Eram amarrados com cordas e cintos em grupos e colocados no compartimento de carga dos aviões da FAB (Força Aérea Brasileira). As três viagens foram realizadas num período de duas semanas, em intervalos de cinco dias aproximadamente. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 173-174)

[...] Nas viagens, alguns conseguiram levar os poucos pertences que mantinham. Tudo foi amarrado em trouxas de pano. Outros sequer conseguiram carregar seus pertences pessoais. Ficaram somente com a roupa do corpo, algumas latas velhas ou caixas de madeira. Todos os indígenas tinham um sentimento em comum: a incerteza do destino e a certeza do retorno, um dia, para suas terras. Mas uma dúvida pairava no ar: como retornar, se no avião não era possível enxergar o caminho? Mas tais dificuldades, como conta a história, não impediu o retorno dos que mantiveram firmes laços com seus antepassados. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 174)

O papel da Missão Salesiana São Marcos
Naquele agosto de 1966, ano da fatídica diáspora e do sequestro das crianças, logo que chegaram à Missão Salesiana São Marcos, em Barra do Garças, os Marãiwatsédé foram surpreendidos por várias doenças. Muitos estavam em estado debilitado de saúde devido aos maus tratos recebidos na Fazenda Suiá Missu e à alimentação precária. Pensavam ainda que a acomodação na missão religiosa seria provisória. Estavam enganados. Foram obrigados a permanecer na localidade. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 175)

Ações posteriores, o MP Federal e o genocídio
O Ministério Público Federal ainda aguarda que todos os envolvidos na ação civil pública contra a família Ometto, a Funai e o Estado do Mato Grosso sejam citados para que o processo tenha andamento na Justiça. A ação teve início em 2016. A procuradoria fala em tentativa de genocídio. Esse era o objetivo do Estado brasileiro à época e dos empreendedores particulares para permitir que as terras dos indígenas fossem apropriadas para o empreendimento agropecuário. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 178)

Tal ação busca reparar danos de natureza material e moral coletivos sofridos pela comunidade Xavante Marãiwatsédé devido à remoção forçada de seu território em 1966. Só não cita o sequestro das cinco crianças. Uma parte dessa tragédia humana iniciada em 1966. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 178)

O plano militar para o território e seus recursos
Marco da ignorância e do pouco caso para com as nações indígenas, o caso do sequestro dos bebês Marãiwatsédé e a transferência da aldeia inteira de suas terras precedeu a uma política adotada pelos militares durante o período de ditadura que possibilitou a concentração de terras brasileiras nas mãos de grupos internacionais. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 178)

[...] havia o enorme receio de que se perdesse o controle sobre uma região de muita importância estratégica, devido às fronteiras e também à guerrilha do Araguaia. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 179)

Havia, acima das questões geopolíticas, a preocupação econômica, em função da descoberta de grandes jazidas minerais, que seriam e continuam sendo cobiçadas por grandes grupos internos e externos. Vislumbrava-se também a enorme oportunidade de realização de muitos negócios com conglomerados internacionais. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 179)

[...] O governo federal, na segunda metade da década de 1960, já havia oferecido parcerias e doado terras e isenções fiscais a grandes grupos brasileiros. Ação que queria construir laços econômicos profundos com empresas internacionais e ao mesmo tempo tentar manter algum controle sobre áreas consideradas estratégicas. [...] Programa de Integração Nacional (PIN) e lançado pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici. Sua concepção era de viabilizar a ocupação do espaço amazônico à base da construção de duas grandes rodovias, a Transamazônica; e a Cuiabá-Santarém. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 180)

[...] normas para a implantação de projetos de colonização ou concessão de terras, bem como para o estabelecimento ou exploração de indústrias que interessem à segurança nacional nas terras devolutas das faixas mencionadas. O conselho podia praticamente tudo, tinha plenos poderes em todos os sentidos. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 180-181)

A ideologia base Estadunidense
Toda a ideologia de segurança nacional que direcionou as políticas públicas durante os anos de regime militar brasileiro manteve suas bases ideológicas firmadas nos Estados Unidos. As ações eram direcionadas para a proteção das áreas consideradas estratégicas pelo governo dos Estados Unidos, além de manter e ou construir regimes políticos que lhes fossem favoráveis. (Eduardo Reina, Cativeiro sem Fim, p. 179-180)