A Coleção Testemunhos da Pandemia de COVID-19 é fruto de um trabalho conjunto entre o Museu das Memórias (In)Possíveis e o Coletivo Testemunhos da Pandemia.
Sobre o Coletivo Testemunhos da Pandemia:
"O Coletivo “Testemunhos da Pandemia”, é composto por psicanalistas, psicólogos e museóloga e se reúne desde agosto de 2021. Somos movidos pelo desejo-inquietação comum de promover algumas reflexões e ações na cidade de Porto Alegre, no que diz respeito a uma questão que não cessa de se apresentar: “o que estamos fazendo diante disso que nos passa?”. Diante de uma pandemia que no Brasil é também um projeto de governo, um projeto de morte, um genocídio? O que podemos enquanto cidadãos e enquanto psicanalistas diante disso que por vezes é tão difícil, senão impossível nomear?
Somos o pan da pandemia. Somos os sobreviventes. Estamos nela. Os seus impactos ainda são - e precisamos falar sobre isso, também no agora. Muitos lutos permeiam nosso cotidiano – por mortes físicas, reais, simbólicas, pelo afastamento condicionado à esperança de sobrevivência. A retomada está sendo bem mais complexa do que nosso desejo gostaria.
Mas… sobreviver não basta. Precisamos reconhecer e falar sobre o que estamos vivendo e testemunhando. Indignar-se o suficiente para que o luto opere, sem impedir a escuta daqueles que compartilham conosco as suas dores pandêmicas.
Desafiamos, pois, não apenas um estado de coisas muito bem planejado e orquestrado, mas também o apaziguamento da consciência diante da quase ausência total de forças para a luta – a luta pela sobrevivência de outrem. Para o luto – para que tenha espaço e tempo e advenha. Nossos fios são frágeis, são desafios. São corajosos: tecem-se, opõem-se, incitam, afiam. Afiançam.
Desafiamos a urgência que acomete nosso tempo, por isso fazemos frente à chance de inscrição da experiência comum no âmago do desespero. Esperamos. Esperançamos. Desafiamos o registro, o afazer, a responsabilidade.
Nesta aposta por um tempo-espaço de certa parada, na contramão da ideia de “seguir adiante” e “não parar", pretendemos caminhar na direção de uma possível inscrição do luto coletivo, entendendo-o como um ato ético e político, ato de memória e reconhecimento. Queremos nos dar ao direito de nos enlutar coletivamente. É a pre-condição para o luto a retomada de uma coletivização do sofrimento e das estratégias de sua elaboração. É nessa reelaboração do campo simbólico que cada um pode amarrar seu processo singular.
O conceito de Testemunho orienta nosso modo de entender e nos posicionar na escuta. Escuta que se exerce na dinâmica projetada por uma banda de Möbius: por um lado, na sustentação de um espaço-tempo para a construção de uma narrativa testemunhal (sempre singular, sempre inacabada, sempre errante, sempre em nome próprio) e de outro, a construção de condições no discurso social (no campo simbólico) de recepção dessas narrativas e a inscrição dessas memórias para uma possível elaboração - sempre coletiva - do traumático. Trabalho sensível que nos convoca a nos ofertar como testemunhas do testemunho, ao mesmo tempo que os nossos próprios testemunhos vão sendo produzidos e testemunhados por outres, no coletivo.
É necessário parar. Parar para inscrever. Inscrever na cidade, inscrever no Museu das Memórias (In)Possíveis, inscrever nas instituições, inscrever nos nossos corpos. Vamos parar e escutar. Vamos romper com a individualização, vamos nos coletivizar.
É por essa razão que esse projeto se inscreve em um Museu, um museu fundado pela ética psicanalítica que tem por objetivo desenterrar o que o espaço público tenta apagar. Vamos desenterrar histórias e memórias daqueles que não foram enterrados com os rituais necessários, vamos desenterrar as dores de quem perdeu ilusões, sonhos, imaginação. Construirmos memória disso tudo que vivemos e ainda estamos vivendo.
O Museu das Memórias (In)Possíveis e o Coletivo Testemunhos da Pandemia se propõem a ser sustentação para a elaboração de testemunhos públicos, sustentação do direito de desabar, de ser escutado, de encontrar ancoragem numa rede que suporte o nascimento de uma nova vida que se dá apesar do luto de uma existência anterior que já não é mais, sem negar, sem sonegar o trauma coletivo que funda a possibilidade de uma nova vida existir, resistir, ser sonhada.
Para a realização deste projeto, o coletivo buscou e encontrou na Appoa, no Instituto Appoa, no Museu das Memórias (In)Possíveis e em diálogo com colegas que participaram do projeto Clínicas do Testemunho, o amparo para este trabalho, procurando alocar nesta instituição nossos pensamentos e reflexões, bem como diretrizes, práticas e ações, especialmente no que se refere ao como e por onde desejamos propor nossas intervenções.
Nesses caminhos por onde fomos nos articulando com grupos, instituições e pessoas buscando convergências e ancoragem para as nossas ações, também nos encontramos com a Karina Blom, psicóloga e psicanalista que trabalhou na atenção básica à saúde durante o período pandêmico. Começamos com ela um trabalho de escuta da sua experiência no que ela chamava “no front”. Nesses encontros ela foi inicialmente compartilhando fragmentos de memórias, cenas soltas, perguntas, dores e, aos poucos, elaborando essa narrativa testemunhal. Foi profundamente tocante, potente e certamente decisivo na construção de um sentido para as nossas ações enquanto coletivo testemunhar tanto a sua fala necessária quanto o processo de elaboração.
O resultado deste trabalho se transformou na "Roda de Conversa: O Museu das Memórias (𝘐𝘯)Possíveis conversa com o Coletivo Testemunhos da Pandemia" e pode ser acessado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=a9fMxsbJ0QY
Neste evento, além de escutarmos o testemunho de Karina, lançamos um formulário eletrônico para que todos que se sentissem convocados pudessem contar sua experiência na pandemia, cada qual a sua maneira.
A Coleção Testemunhos da Pandemia de COVID-19 nasceu assim.
Texto: Alexandre Costi Pandolfo, Ana Maria Dall Agnese, Carla Cervera Sei, Francielle Lenz, Maíra Brum Rieck, Priscila Chagas, Soledad Mendez, Vanessa Solis