parte 3
"(...) esses moradores sabem que, além da casa, necessitam viver num território onde também possam ter acesso aos demais bens e serviços que tornam a vida digna. Estavam inseridos nos serviços da região, como escola, creche, posto de saúde e centros de assistência social. O centro da cidade é uma região muito rica na produção de resíduos, garantindo o trabalho de coleta. Construíram uma rede de apoio informal, composta por moradores do entorno, igrejas, restaurantes que auxiliavam com alimentos, roupas, móveis. Assim, diziam: “O centro é muito rico e aqui ninguém passa fome”.

(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012, p.166-167)
Resistências
Hoje a Vila Chocolatão não existe mais, se transformou em estacionamento. O que isso diz de nós, de nossa cultura e da relação que estabelecemos com os outros? Por que um estacionamento é mais importante do que as pessoas e as casas que ali existiam? Por que essas pessoas foram enviadas para longe de onde estavam suas lembranças e histórias?

Não eram somente as casas, as árvores, as entradas da Vila que davam lugar àqueles que ali viviam, a localização geográfica também era importante: o rio Guaíba, o Parque Harmonia, o centro de Porto Alegre. Perto desses espaços públicos os ex-moradores da Vila trabalhavam e situavam seus locais de circulação.

Alguns chegaram ali adultos, outros nasceram, deram seus primeiros beijos, sonharam, amaram e construíram suas histórias. Nada restou. Tudo virou concreto, um estacionamento. A pergunta retorna: o que isso diz de todos nós?
Fonte: ComiteCopaPOA, 2011
Essas impressões vêm de um tempo já antigo. Hoje, o Riacho é um
curso d’água comportado, despoluído, de águas claras, que caminha
entre margens retificadas e, provavelmente, sobre leito de saibro.
Foi submetido às exigências urbanísticas. A Ponte de Pedra,
sua irmã, agora fora do contexto, tornou-se intrusa. Estranho ver
edifícios históricos (tombados) engolidos por modernas estruturas
que os fazem parecer cadáveres em sarcófagos. Essa hibridez
vem do desamor pelo velho e da avidez de lucro. As contínuas
reformas na nossa cidade – a cidade é a nossa casa – nos transformam
em forasteiros. O progresso é uma ação de despejo em execução.
Por isso, um belo dia, na temida velhice, sentimos a incontida
vontade de voltar a nosso pátio, para reaver as nossas coisas que lá
deixamos.

-
Iberê Camargo, “O riacho”
Mapas Afetivos
Recuperar a potência da palavra em contextos tão áridos está em consonância com o princípio ético da psicanálise e se apresenta como uma especificidade do trabalho. Pois, para que a lembrança dolorosa encontre significações e possibilite aberturas discursivas é necessária uma passagem do vivido ao narrado, sendo que, ao narrar, suportamos perder o que ficou para trás.
(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012)


Circulamos por lugares considerados significativos, construindo um mapeamento afetivo com os moradores, na perspectiva de articular a memória dos moradores a um lugar – a vila, a cidade. Os encontros eram realizados na comunidade, no parque, na associação de moradores, na praça, na sombra das árvores. Ao percorrer esse trajeto, percebemos o efeito de uma expansão do território e reconfiguração de limites que puderam ser compartilhados. [...] Esses lugares foram fotografados, constituindo-se, posteriormente, em uma mostra fotográfica. Adriana fez questão de fotografar o interior de sua casa, pois se sentia bem nela, sendo que ali conseguiu ter uma casa, suas coisas, e cada objeto da casa representava muito para ela. Manuela gostaria de fotografar uma árvore da entrada da Vila, local onde sua filha nasceu. Nesse trânsito, seguíamos fotografando, conversando, ouvindo as histórias e formulando questões sobre o novo local de moradia.
(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012)
Ao saber que iriam ser reassentados para fora do centro da cidade, Luciane e Marisa propuseram aos moradores da Vila Chocolatão que imaginassem como seriam suas novas casas, quem seriam seus vizinhos, como seria o que chamaram de “Nova Chocolatão”. Propuseram que criassem seus “mapas de desejos”, que pudessem materializar no papel uma nova vida.
Entrevista Marisa - Mapas de desejos
"A Vila representou um lugar de acolhimento, reconhecimento, inscrição, perdas e dores. Foi também lugar de passagem, trânsito e nascimento. Nos espaços coletivos, através de rodas de conversas, buscamos a recuperação da memória, da historicidade, do testemunho dos primeiros moradores da Vila, que foram seus fundadores, e de como as histórias puderam ser compartilhadas. Nesses espaços, recortamos os significantes que possibilitassem o reposicionamento subjetivo"

(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012, p.168)
solução ou problemas? • Para quem? • Casa-lar ou casa- maquete?
"Ao dar lugar às falas carregadas de angústia frente à mudança ao enfrentamento com o novo, também se apresentava o desejo de permanecer no lugar onde estavam. Os moradores se perguntavam se, nesse novo território, teriam acesso ao que já haviam conquistado, referindo-se aos serviços que usufruíam. As falas apontavam para certa forma de exílio, na medida em que faziam referência a uma distância, a um lugar muito longe: “As casinhas são muito longe, lá no fim do mundo”" "(...) procuramos recuperar e preservar a memória da comunidade e também inscrever uma partida, fazer uma despedida, um luto. Construir uma aposta de futuro e abertura para apropriação do novo território. Resguardar os sujeitos da dimensão dolorosa e violenta, que está, muitas vezes, envolvida nesses processos [...] “Destacamos que a escolha do nome [Residencial Nova Chocolatão], decidida em assembleia de moradores, preservou traços identificatórios, de forma a servir-se do passado para inventar o novo”."
(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012, p.167)
Distância entre a antiga e a Residencial Nova Vila Chocolatão. Veja neste link a distância pelo Google Earth
casa-lar ou casa-maquete?
Talvez as casas sejam consideradas "melhores", maiores, mais limpas, com mais espaço. Mas o que essas casas dizem dos seus novos moradores? Será que eles a sentem como suas? Essas novas casas viraram lar? Será que eles não sentem saudades de suas casas inventadas e criativas no centro da cidade? Eram recicladores os moradores da Vila Chocolatão. Transformavam o lixo da classe social que pode habitar o centro da cidade em lar, em vida. Será que uma casa recebida num território da cidade que não lhes diz respeito é preferível? É preferível por quem? Os que podem habitar o centro talvez pensem que essas novas casas sejam “casas de verdade”. Mas e os moradores da antiga Vila Chocolatão? Eles pensam assim? A pergunta retorna: o que é uma casa?
"Como nos lembra Milton Santos (1987): “Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é sede de vigorosa alienação”

(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012, p.168)
Qual é o lugar do "novo" ou "nova" nesta história? Será que há um lugar? Será que o novo não fica apenas na fachada? Ou para quem está de fora? Ou no passado? O que podemos ver do que não está lá? Ou melhor, o que podemos ver do que não pode ser visto?
Reflexões sobre os modos de
ocupação do espaço urbano
Quem pode ocupar o centro de uma cidade? O que é um centro? O que é uma periferia? Existem modos de ser que podem estar no centro e modos de ser que não podem? Quem pode e quem não pode? Os moradores da Vila Chocolatão não puderam viver no centro. Não lhes foi permitido pelo poder público viver no centro. Preferiram um estacionamento no lugar. Carro é mais importante do que gente? Quem são essas gentes que têm que ser colocadas para fora da cidade? O que elas carregam em si, que marcas, que histórias, que estigmas? Por que elas não podem habitar o centro quando elas têm o desejo de habitá-lo? Quem se incomoda com elas? O que elas representam para quem as olha? Que olhar é esse?

Excluído tem lugar? No dicionário excluído quer dizer "que foi alvo de exclusão; colocado ou deixado de fora; expulso; que foi omitido".

Segundo Marc Augé (2010), descobrimos no decorrer do século XX a riqueza das culturas ditas “orais” ou “sem escrita”. São culturas que desenvolveram modos de conhecimento e formas extremamente refinadas de adaptação ao meio ambiente.
“Um dos dramas de nossa época é que muitos indivíduos, devido a fatos como a colonização, a globalização, o êxodo rural, guerras, fomes e migração, foram despossuídos de seus saberes tradicionais sem ter acesso, no entanto, aos modos de conhecimento modernos. Eles se empilham nas favelas e arrebaldes urbanos do terceiro mundo, nos campos de refugiados ou, quando tem a chance de conseguir imigrar, nos bairros pobres dos países desenvolvidos”
(AUGÉ, 2010, p. 57).
O autor propõe repensarmos a noção de fronteira, essa realidade constantemente renegada e reafirmada. Atenta para a forma como elas se reafirmam constantemente sob formas enrijecidas, que funcionam como interditos e provocam exclusões.
O que separa essa grade?
O que é o dentro
e o fora?
Vizinhos a “cuidar”…
Entrevista Marisa - Disputa por territórios - Estado
“Como outras migrações brasileiras, a remoção da Vila Chocolatão — vista pelo ângulo da sua causa — caracteriza-se como migração forçada, em razão de não representar inicialmente o desejo da comunidade. Essa migração atende ao jogo do mercado, no qual os direitos dos cidadãos, por muitas vezes, encontram-se suprimidos” (SANTOS, [1987] 2007).

(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012)
“Migrações forçadas” são uma das características principais da constituição das vilas, ocupações, invasões, de tantas vidas “irregulares”. (...) Quando o “patrão” morre, os filhos vendem ou arrendam o campo, e o contrato “na palavra” nada mais vale. Perdem o lugar de moradia (caseiros), da horta e criação de sobrevivência, de trabalho, de relações sociais de pertencimento e vêm para a cidade ganhar o pão e “melhorar de vida”. Semi-analfabetos, na informalidade, é dos restos (catação) que terão que sobreviver, pois até para servente precisa experiência e referências.

Aos poucos, vão se constituindo comunidades, reconstruindo a vida possível nas cidades. E as gerações seguintes já nem lembram mais suas raízes. Nos contrastes da cidade grande, os pais e suas histórias não fazem mais referência de saberes, aos ofícios de vida. As percepções do tempo na observação das nuvens, a umidade da terra, a erva daninha, a erva boa contra as pestes, o tempo de poda, a escolha das sementes, o ponto de colheita, o saber fazer, nada faz mais sentido na cidade. Há um desvalor social, desqualificação e vergonha, o consumo inacessível idealizado vira status.
Mas, por quê não criar
infraestrutura no local?
Talvez, um dos problemas “invisíveis” da Chocolatão, fosse a sua altíssima visibilidade das janelas do “poder público”. Diariamente incômodo, questionando a legitimidade de direitos, na extrema desigualdade social. A extrema pobreza “batia à porta todo o santo dia”.

Foram muitos, no próprio campo judiciário, que embargaram a remoção, de qualquer jeito, para nenhum lugar. Foi a desocupação mais debatida na cidade de Porto Alegre, obrigando o Estado a construir condições “dignas” para aquelas pessoas, um projeto de infraestrutura, considerado modelo para outros países e para conceituados organismos internacionais. Modelo de quê?

Mas, por quê não proporcionar saneamento básico no mesmo local? “Para essa gente que não quer nada com nada transformar em depósito de lixo e ponto de tráfico? Não, lá não”. “E fomentaria ocupações…”. “O Estado tem uma imagem a zelar”- Diriam os que podem habitar o centro.

A rápida resposta “dessa gente que não trabalha”, se desfaz com a menor aproximação. Não há trabalho mais penoso e insalubre que lidar com o lixo, os rejeitos dos nossos excessos.

Quem trabalha na catação o faz desde a madrugada - antes de o comércio abrir -, e depois que tudo fecha - quando conseguem os melhores rejeitos de embalagens e lixos diversos. Carregam ao sol a pique, com chuva e frio, cargas que seriam questionáveis por nós defensores de animais. Mas, se você vê um catador dormindo na rua durante o dia, jamais imagina que ele esteja em horário de intervalo. Um paletó com whisky para relaxar é status. Uma cachaça para aliviar as frustrações é “vagabundo bêbado sem cura”, dizem os habitantes do centro.
"A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago."

Carolina Maria de Jesus, em "Quarto de despejo", 1960.
Um projeto simples e de baixo custo para carrinhos motorizados não teve investimento na cidade dos contêineres (mais caros que uma casa emergencial) que são coletados por caminhões mais caros ainda. Se você for conhecer o trabalho dos recicladores nas Unidades de Triagem - UT’s vai perceber que a idéia romântica de associativismo revirou exploração de patrão, capataz (é o nome que referem), reproduzindo o “Sr. do Mato” do tempo da escravidão. Mulher com filho doente que não foi trabalhar, não recebe seu sustento e, muitas vezes, perde a vaga. Diferente do direito à licenças no trabalho formal com Previdência.
Créditos: Gustavo Ventura Gomes
Remoções de fato: destruições e ruínas
A possibilidade do novo convivia com a insistência da destruição, pois, durante o processo de remoção das famílias, que transcorreu durante alguns dias, o que se presenciou foi muita destruição, em que a desfiguração do espaço foi determinante na angústia dos moradores. As casas vizinhas, as ruelas, a associação de moradores, as entradas da Vila, os bares da comunidade, os becos, não existiam mais, a não ser na memória, ainda recente e frágil para o momento do acontecimento. Estavam ali a Polícia Federal, a Brigada Militar, os guardas municipais, técnicos de várias secretarias, retroescavadeiras e muitos escombros. Parecia cenário de guerra. Um morador refere: “Aqui parece o Japão”. Estava certo. Falava de uma catástrofe, de algo com o poder de arruinar, de não deixar nada. Com os pertences encaixotados para a mudança, outra moradora diz: “Nos deixaram aqui, pior que animais”. Também contundente em sua fala, pois essa remoção, considerando a acepção de Milton Santos ([1987] 2007), guarda pouco do que podemos considerar humano.
(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012)


Nesse contexto de exclusão, violência e alienação, o desafio é intervir de modo a entrelaçar as dimensões clínica, política e social, restituindo a dignidade ética à palavra, possibilitando ao sujeito se reinventar e criando um laço social de inclusão.
(SOARES, SUSIN, WARPECHOWSKI, 2011-2012)


A polícia participou do momento da remoção. Foi um momento tenso. O poder público começou a fazer a destruição das casas minutos depois de os moradores retirarem seus pertences para que não houvesse "invasores". Moradores se transformaram em invasores no léxico do poder público. Para os moradores, esse foi um momento terrível: mal tiravam seus pertences, a casa que haviam construído com suas próprias mãos era derrubada, sem qualquer tempo de luto ou elaboração pela perda.
silêncio
A remoção ocorreu na frente dos moradores, silenciados diante da violência. Viram suas casas destruídas num movimento rápido, sem dificuldade para a maquinaria pesada que destruía em segundos a criação de uma vida.
Aos doze dias de maio de 2011 a última casa da Vila Chocolatão foi destruída.
Entrevista Luciane - Conflito ético do trabalho
Expulsos da expulsão, as repetições da cultura de exclusão e os limites no cotidiano das relações de suas ausências... O que diz de “nossa sociedade” a expulsão daqueles moradores que se mostraram criativos para inventar existências a partir dos restos…
Entrevista Luciane - Remoção pior que os incêndios
Até hoje, a Vila Chocolatão segue na memória de Marisa. Ela fez um mural no CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), onde trabalha, com as fotos da Vila. Quando enviou a foto ao Museu, escreveu assim:
"Foi uma forma de preservar a memória desta comunidade e do trabalho que desenvolvemos com estes moradores durante muitos anos. Estas imagens seguem produzindo discursos, uma vez que é comum para os usuários que hoje acessam o CREAS também lembrar desta comunidade, dos conhecidos que tinham ali, das histórias que conheciam sobre a Vila. Também nós, trabalhadores, produzimos lembranças dos vínculos construídos, do trabalho compartilhado e da saudade que deixaram. Este quadro de certa forma preserva a Vila Chocolatão em nossa memória e em nossos afetos". (Marisa)
"Quem escreve pode passar fome de comida
mas tem o pão da sabedoria e pode gritar
com suas palavras sabias."

(Carolina Maria de Jesus em
"Carolina sem cortes".
Revista da História, 7/02/2011)
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