Quais os olhares que nos constituem? Quais as narrativas, as histórias, as memórias e as palavras que marcam o nosso corpo, a nossa carne? O que nos faz sermos o que somos? Quais são as histórias que elegemos para dizer de nós? Quais histórias descartamos? Quais são os olhares que nos destroem? Quais são as histórias que nos destroem? Quais são as marcas que nos colocam nas margens e nos descartam? Quais são os olhares que nos restituem a dignidade?
"[...]
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

[...]
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

[...]
O que é bom para o lixo é bom para poesia

As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora
Matéria de poesia In Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
A imagem acima, de uma janela entreaberta, iluminando as pessoas dentro do galpão, abre um pensamento sobre frestas. Fresta como corte da imagem, como irrupção de um pensamento outro, como subversão do estabelecido:

“Nós não trabalhamos com lixo, trabalhamos com material reciclável”. Foi com essa frase que Luiz Eduardo Robinson Achutti foi recebido nos anos 1990 na primeira experiência de reciclagem de lixo na cidade de Porto Alegre. Eram apenas 12 mulheres e 3 homens que trabalhavam em um pequeno galpão na Vila Dique, na zona norte de Porto Alegre. Naquela época, por ser uma experiência inicial e pioneira, o lixo que chegava no galpão ainda era pouco, e o trabalho era bem remunerado a seus olhos – ganhavam mais do que um salário mínimo.
Vida, família e trabalho
Era com o lixo que trabalhavam e estavam acostumadas a serem retratadas pelos meios de comunicação tradicionais – quando eram – de uma maneira desvalorizada, desumanizada, como estatísticas... elas não queriam mais ser vistas assim. Achutti lhes garantiu que seu olhar era outro, que estava ali fotografando o trabalho delas para sua dissertação de mestrado, que iria contar na universidade sobre o trabalho que faziam. Elas permitiram a sua presença.

Estabeleceu-se um diálogo de olhares. Achutti emprestou seu olhar, mas ao mesmo tempo incorporou no seu trabalho esses outros olhares para o que normalmente não vemos: o valor do que resta, do descartado, e das vidas que se ocupam da reciclagem como meio de sustento, tornando visíveis suas existências invisíveis.
“O mundo é salvo todos os
dias por pequenos gestos.
Diminutos, invisíveis.
O mundo é salvo pelo avesso
da importância.
Pelo antônimo da evidência.
O mundo é salvo por um olhar.
Que envolve e afaga.
Abarca.
Resgata.
Reconhece.
Salva.
Inclui”

Eliane Brum, 2006, p. 22
Malvina Fischer
Maria Alves
Olívia
“O corte aproxima o retrato".
Achutti
Rose
Achutti ia encontrá-las em seu “tempo de descanso”, quando empilhavam os jornais que chegavam para reciclagem e conversavam.

De tempos em tempos, levava impressas as fotos que tirava delas e as presenteava. Como dissemos, não era a época das câmeras digitais, muito menos das câmaras de celulares, ou dos selfies. Naquela época, elas não tinham muitas fotos suas ou de suas famílias, a revelação era relativamente cara. Esses presentes se tornaram valiosos para elas que começaram a se ver através do olhar de Achutti.
As molduras vazias que encontravam no lixo foram preenchidas por essas fotos, e elas começaram a se reconhecer nesse novo olhar. Não aquele que era associado ao lixo, mas esse outro, que as via com a beleza que tinham. O olhar de Achutti registrou a ressignificação do lixo que deixava de ser apenas objeto do trabalho, humanizando e decorando seus espaços de convivência, tanto os galpões quanto as casas . Não era incomum resgatarem objetos do lixo para fazê-los reviver e ganhar outros sentidos. De certa forma, parece ter sido esse o efeito do olhar de Achutti, ressaltar a dignidade daquelas que trabalhavam com reciclagem, reciclando com elas o seu lugar no mundo (um lugar que transcende o lixo).
Carlos Urbim, amigo de Achutti e jornalista, resolveu contar no jornal Zero Hora a pesquisa de Achutti. As mulheres do galpão descobriram o fato na missa que frequentavam. O padre exibiu as três páginas de jornal durante o culto. Assim como as fotos de Achutti, a matéria de jornal virou digna de ser colada nas paredes da igreja. Mais uma constatação de que o olhar de Achutti não seria aquele que estavam acostumadas a ver no jornal sobre si. Tornaram-se protagonistas.
“O jornal ficou no mural da igreja da Vila Dique até a remoção da Vila (para outro local)”
(Ofrazio Pinheiro)
Reciclagem de restos, uma ressignificação sobre a importância do jornal: do jornal, restos que se transformam em material valioso de trabalho, à reportagem de jornal, restos que se transformam em álbuns de família, em memórias.
Os tesouros do lixo eram muitos, mas a chegada da boneca foi recebida com muita alegria. Era grande, linda e estava como que nova. A moça pega a boneca, vira, mexe, arruma. É de colocar pilhas. Procura pilhas do tamanho certo no lixo. Encontra. Achutti fotografa todo o processo apreensivo. Tem medo de que as pilhas não funcionem, que a boneca esteja estragada, que a moça se frustre. Tenta consolá-la antes mesmo de ter certeza de que o processo termine. A boneca não ganha vida. Achutti a consola novamente, talvez sejam as pilhas que não funcionam. Anos depois, a filha de Achutti nasce e é fotografada em seu nascimento. Em algum momento depois, Achutti percebe que a sequência fotográfica que fez de sua filha é muito parecida com a da boneca do lixo. Expõe as duas sequências.