Mas, muito mais que isso, descobrisse que aqueles que você chama de pai, de mãe estiveram envolvidos no assassinato ou desaparecimento de seus pais biológicos. O que você sentiria? O que restaria de você? Em quem você confiaria? Poderia confiar novamente? Onde você se agarraria para manter algo de si?
 Em 2019, o jornalista Eduardo Reina publicou o livro Cativeiro sem Fim: as histórias de bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil. Neste livro, Eduardo prova com uma pesquisa exaustiva e de fôlego que o sequestro de crianças não era uma exceção na ditadura militar brasileira, mas um método, uma regra.
 Eduardo nos conta que no Brasil, diferentemente de outros países da América Latina, são os filhos que procuram os pais e não os pais que procuram os filhos, seja porque foram assassinados, seja porque ainda têm medo dos militares, seja porque estão traumatizados.
 Os efeitos traumáticos destas violências são devastadores. Sabemos o quanto a lógica da filiação é estruturante na constituição psíquica dos sujeitos. Portanto, romper esses laços da forma cruel como revelam as histórias de sequestros de crianças, é condenar essas pessoas a lugar nenhum, a lugares vazios.
 Como é para esses pais terem os filhos sequestrados pelos seus torturadores? Como é para os filhos descobrirem que seus pais "adotivos" são os torturadores ou assassinos dos pais biológicos ou têm relações com estes criminosos? Onde estão esses filhos? Onde estão esses pais? Quem são?
Entrevista com Rosângela e Stheffanne, realizada em junho de 2023
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DA FICÇÃO À REALIDADE
Eduardo cria uma história de ficção para encontrar casos reais de sequestro de crianças na ditadura civil-militar brasileira.
O livro que comprovou que a história oficial sobre ditadura civil-militar brasileira é fundada em uma mentira: que teria sido uma "dita-branda".
Eduardo Reina fala sobre o começo da história do livro o Cativeiro sem Fim
Eduardo Reina explica o título de livro
 O que significa viver em um país que deseja aniquilar, apagar, matar corpo e memória daqueles que pensam diferente do poder público? "Matar a própria morte", nos diz Reina. No Brasil não tivemos uma "dita-branda", como até pouco tempo se dizia. No Brasil tivemos uma ditadura sangrenta, que matou milhares de pessoas, torturou, sequestrou bebês de ativistas contrários aos ideais empresariais, civis e militares. Estuprou, desapareceu pessoas, praticou genocídio e etnocídio indígena, criou mecanismos de repressão a movimentos negros.
 Criar uma narrativa de ditadura branda no Brasil era uma política de estado, uma política ativa de apagamento. Apagar os rastros da memória, apagar os rastros dos crimes, "incinerar" os corpos. Matar a memória, matar o rastro da memória.
A historiadora Caroline Bauer contextualiza a ditadura civil-militar e a região do Araguaia.
Matavam crianças consideradas já contaminadas pelos ideais contrários à ditadura. Roubavam crianças pequenas para criá-las com base nos ideais militares. Apagavam os rastros de transmissão em sua origem. Destruir os pais biológicos em corpo, memória, ideias.
Eduardo Reina fala sobre a ideologia dos sequestros.
Matar o rastro da memória era o ideal militar. Mas o rastro resiste. Como nesta obra que representa Pablo Miguez, morto aos 14 anos. Instalada no Rio da Prata em Buenos Aires (Parque de la Memoria).
(A pulsão de morte) trabalha, mas uma vez que trabalha sempre em silêncio, não deixa nunca nenhum arquivo que lhe seja próprio. Ela destrói seu próprio arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a motivação mesma de seu movimento mais característico. Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar, mas também com vistas a apagar seus “próprios” traços – que já não podem desde então serem chamados “próprios”. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente. Esta pulsão, portanto, parece não apenas anárquica, anarcôntica (não nos esqueçamos que a pulsão de morte, por mais originaria que seja, não é um princípio, como o são o princípio do prazer e o princípio de realidade): a pulsão de morte é, acima de tudo, anarquívica, poderíamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo (Jacques Derrida, 2001, p. 21).
Função social da investigação e
reconhecimento dos testemunhos
Eduardo Reina fala sobre as buscas pelos familiares e do desamparo de instituições.
Não é adoção! É apropriação,
sequestro, roubo de crianças
A psicanalista Bárbara Conte fala sobre os efeitos psíquicos que são gerados nas crianças sequestradas e/ou torturadas pelos militares.
 Resistir e sobreviver à violência de uma operação de sequestro do seio de sua verdadeira família, às vezes, quando ainda nem era possível verbalizar indignação ou fugir. Foram estes os casos dos bebês roubados. …. Resistir e sobreviver a cena de assassinato de seus familiares. Ver-se separado a força de seus irmãos e irmãs, muito jovens e desamparados. Este foi o caso das crianças roubadas. … Resistir e sobreviver à pressão psicológica, à violência física, às tentativas de assasinato, ao sequestro, à clausura e tortura, ao trabalho forçado em unidades militares quando ainda se era muito jovem. Ouvir repetidas e reiteradas vezes as mentiras, as promessas de uma vida melhor, de estudo e moradia em grandes centros urbanos. Esse foi o caso dos jovens roubados. ….
 Resistir e sobreviver à pressão psicológica, à violência física, às tentativas de assasinato, ao sequestro, à clausura e tortura, ao trabalho forçado em unidades militares quando ainda se era muito jovem. Ouvir repetidas e reiteradas vezes as mentiras, as promessas de uma vida melhor, de estudo e moradia em grandes centros urbanos. Esse foi o caso dos jovens roubados. …. Não obstante, ainda foi preciso resistir e sobreviver a todo tipo de violência, de abusos, humilhações e maus tratos em uma família que não era a sua. Uma família de sequestradores. Resistir e sobreviver a potencialização dessas violências quando, por algum motivo, se suspeita ou se descobre algo de suas verdadeiras origens. Resistir e sobreviver à expulsão de casa, aos pactos de silêncio, às ameaças, ao ostracismo. Resistir e sobreviver ao vazio da mentira, ao buraco de uma vida falsa. Agora, a reexistir. A tornar a existir em busca da verdade, a saber quem se é, quem é sua verdadeira família, de onde se veio. A reexistir para tomar aquilo que lhe foi roubado à força, sua identidade.
Conheça os casos de Iracema, Rosângela, dos Indígenas Marãiwatsédé, de Juracy, Giovani, Yeda, Miracy, Antônio Viana e Carlânia, de José Vieira, Antoninho, Zé Wilson, Zé Ribamar, Osnil e Sebastiãozinho, de Helcida e Paulo, de Soledad e seu bebê, e da bebê (anônima). Foram estes, alguns dos casos investigados pelo jornalista de redescoberta Eduardo Reina.