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belo monte
violência e etnocídio
“Imagine que um dia alguém chega na sua casa e lhe diz que você não pode mais morar ali. Você não quer sair. Não colocou sua casa à venda. Não pensava em nada disso. Ao contrário: acreditava que tinha um lugar sólido no mundo.
  Alguém “lá de cima” disse que você tem que sair e que sua casa, sua ilha, sua plantação serão destruídos. Alguém “lá de cima” não é uma divindade, mas soa e age como se fosse, ao menos é assim que sentem os expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte. Eles percebem o governo federal como uma força tirânica. Historicamente, para os povos da floresta, o Estado é aquele que só aparece para aniquilá-los.
  O governo federal decidiu construir uma barragem no Estado do Pará, uma hidrelétrica chamada Belo Monte, em um dos rios mais importantes da Amazônia, o Xingu. Decidiu que essa hidrelétrica seria imposta a qualquer custo. “Belo Monte vai sair!”, berrou Dilma Rousseff, dando um murro na mesa, quando era ministra de Minas e Energia de Lula, ao ser questionada por lideranças da região.
  O projeto da obra não era novidade: foi elaborado durante o período da ditadura civil-militar. Foi a resistência dos povos indígenas e dos movimentos sociais que não permitiu que a usina fosse construída. Na época, a hidrelétrica, que agora se chama Belo Monte, chamava-se Kararaô. Ironicamente, a palavra significa um grito de guerra na língua dos Kayapó. Em 1989, durante um encontro na cidade de Altamira, a índia Tuíra encostou um facão no rosto do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, para mostrar o quanto seu povo se sentia violentado pelo projeto. A fotografia que imortalizou essa cena correu o mundo.
  A hidrelétrica só saiu do papel 20 anos depois da redemocratização do país, nos governos Lula-Dilma. Mais uma ironia. Belo Monte foi então apresentada como uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Tornou-se, especialmente a partir do início da segunda década deste século 21, uma arquitetura intrincada, em que governo e empresa, público e privado, convenientemente se misturam. Nunca houve diálogo com as populações atingidas para saber sua opinião sobre os efeitos em suas vidas de uma obra estimada em mais de 30 bilhões de Reais.
  Quem era contra a hidrelétrica era considerado contra o desenvolvimento. Violência silenciosa. Os habitantes da região eram silenciados mais uma vez. A primeira violência foi a ausência de diálogo com a população sobre uma obra que iria, para além de afetar suas vidas, aniquilar seu modo de existência; a segunda, foi dizer que não existia espaço para ser contra a obra, com a ameaça velada de ser contra o Brasil, contra a pátria – a mesma pátria que destituiu essas pessoas do lugar de cidadãos. Por essa razão, podemos dizer que esta também é uma guerra travada na linguagem, já que as pessoas se tornam “obstáculos ao progresso”, suas casas e seus pertences são chamados de “resíduos”, sua expulsão de ilhas e baixões ganham o eufemismo de “remoções”. É o empreendedor – o nome moderno e mais “limpinho” para colonizador – que impõe a sintaxe. Se protestam, são fortemente reprimidos pela Força Nacional. Se reclamam, estão contra o Brasil.
  As palavras se tornam instrumentos para consumar a violação dos direitos. É o empreendedor – ou o colonizador – que determina o valor, é o dono absoluto das cifras. A casa que o empreendedor não chama de casa, porque diferente do seu conceito de casa, não tem valor. Uma casa de palafita, para a Norte Energia, é considerada uma "casa de pobre", uma vez que o conceito de casa escolhido é um conceito "urbano". Não entendem que uma casa de palafita em uma ilha no Xingu é entendida pelos ribeirinhos como uma riqueza, já que podem retirar da natureza e do rio tudo o que precisam para viver. Por essa razão, quando são expulsos de suas casas e de suas ilhas, geralmente não recebem indenização. Quando reclamam de terem que sair de suas casas e perderem seu modo de vida, ainda são acusados de serem desonestos, como se qualquer indenização fosse dar conta da perda dessa suposta "casa de pobre" e do meio de vida perdidos. Quando há indenização, é segundo os próprios termos da Norte Energia.
  É também com o seu “material” e sua “arquitetura” e o seu conceito de casa popular que são construídos os Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) – casas erguidas em bairros afastados de Altamira para realocar os expulsos por Belo Monte – casas que começam a rachar depois de dois meses de construção.
  Não é apenas a casa ou a ilha ou a terra que é aniquilada, mas toda a experiência de uma vida. E, por fim, a própria vida, já que para viver, o ser humano precisa mais do que respirar. As tradições indígenas e ribeirinhas estão sendo aniquiladas pela obra. Por essa razão, o Ministério Público entrou com uma ação contra a Norte Energia, chamando a obra de Belo Monte de etnocida [Link: Justiça reconhece interferência nos modos de vida dos indígenas afetados por Belo Monte e ordena mudanças]
  Sem compreender que os povos da floresta não são pobres e que o modo de vida que escolheram não é o mesmo da maioria da sociedade urbana, a obra os converte em pobres urbanos. De ricos na natureza, são transferidos às periferias urbanas, onde não encontram mais sentido para suas vidas.
  A hidrelétrica é apresentada pelo discurso oficial e pela iniciativa privada como “energia limpa”. A destruição de vidas humanas, de espécies inteiras, de pedaços de floresta não é “sujeira” para o centro-sul do país? É também esse discurso, essa sintaxe, que é reproduzida por parte da grande mídia. Para nós, que vivemos nos centros urbanos ou mesmo os rurais, a Amazônia é considerada um lugar inabitado, um lugar para explorar e aniquilar. Como há 500 anos, continuamos sendo filhos dos colonizadores que aniquilaram os povos indígenas. Somos filhos dos que não aceitaram qualquer um que fosse diferente de si mesmo ou que resistisse a ser "civilizado". Tradição perversa que não tem contabilizadas suas chacinas. Isto porque ainda fingimos que nunca aconteceu. Continuamos sendo os filhos assassinos dos nossos ascendentes que vieram colonizar o continente "inabitado". Inabitado porque não consideravam os povos indígenas como humanos. Nada mudou.
  Doenças cardíacas, paralisias, mutismo, depressão são alguns dos sintomas que encontramos na população de refugiados de Belo Monte. A obra deixou um rastro de doentes, e há quem diga de mortos por doenças decorrentes da dor de ter sido abandonado de seu lugar de cidadão.
  O que ocorre com o sujeito quando é destituído de seu lugar de cidadão? O que ocorre com aqueles que não são considerados humanos? O que resta daqueles que, para além da violação que sofrem, são considerados contra o desenvolvimento do país? Como o próprio Estado pode transformar um cidadão em apátrida ou mesmo em um refugiado dentro do próprio país?
  Aqui, no Museu das Memórias (In)Possíveis, devolvemos o lugar ao humano que está sendo violado e destruído, às vidas perdidas, ao sujeito que, assujeitado, se torna objeto. A todos que são aniquilados por não serem escutados nem contados, àqueles que estão adoecendo. Aos homens, mulheres e crianças que se tornam refugiados em seu próprio país, arrancados de seu lugar de pertencimento. Àqueles que não são reconhecidos e já não se reconhecem no território aos pedaços ou submersos. Àqueles que já não são no território que já não é.”
  Maíra Brum Rieck
Filme mostra experiência de 50 participantes, além de canoeiros indígenas e ribeirinhos, que percorreram 112 quilômetros de um dos trechos mais bonitos do Xingu e que será gravemente impactado pelo funcionamento da hidrelétrica de Belo Monte. Confira o álbum de fotos no fim da reportagem. Fonte: Instituto Socioambiental
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Marizan e Valda
Luciano Gouvea
Otavio das Chagas
Raimunda e João
Antônia Melo
José Alexandre, Fifa
Rio Xingu
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Fotos tiradas em 2017 depois que Belo Monte já estava em atividade. Parte do rio Xingu virou um lago
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